Páginas

sábado, 30 de abril de 2011

Querida Izabel,

tentei lembrar da data, mas nem tive tanta vontade. Poderia ter procurado lá nos cadernos ou relatórios ou documentos ou planejamentos antigos, mas agora não quero remexer naquelas coisas. Então, resolvi escrever para te contar um pouco sobre onde meus pensamentos foram te buscar para tentar entender a efemeridade do que existe. O local é o Convento de São Francisco, em Penedo.

Lembro bem daquelas paredes muito grossas e empoeiradas; os grandes e velhos banheiros onde nos encontrávamos todos, bem cedo, quando escovávamos os dentes olhando ao longe o Rio São Francisco; o piso de madeira que rangia a cada passada; as áreas reservadas aos residentes, onde não podíamos entrar; a área aberta localizada no centro do prédio adornada com um jardim pouco tratado; a igreja (acho que) de Nossa Senhora dos Anjos que observávamos, lá de cima, em plena reforma e restauração. Nas reuniões daquela região, comumente ficávamos ali. Por causa dos baixos custos de hospedagem e alimentação, da boa fé dos franciscanos a nos acolher e do nosso jeito de organizar os trabalhos e sonhar com um futuro mais liberto, pra nós e pra tantos outros quanto pudéssemos e quisessem. Acredito que esse sentimento guiava a todos quantos estavam ali.

Lembro de, além das tantas concordâncias e discordâncias, fazermos roda, cantarmos, trabalharmos a noite para organizar os resultados dos debates, das brincadeiras e risadas, dos livros a venda para arrecadar dinheiro, da sua amizade crescente com Silvinha, de eu dizer delícias sobre o suco de melancia e de você e o Hélio irem gentilmente preparar um horroroso suco, com direito a água e açúcar, que ninguém gostou!

Num daqueles dias coordenei uma parte da reunião e por três vezes vi um ‘fantasma’ na porta. Pensava que era um dos trabalhadores da reforma do prédio e, quando apareceu mesmo um desconhecido, alguns não entenderam o que eu tinha falado e alguém comentou que aquele prédio era assombrado e me disse para não ter medo. Ali, não sentia medo, você bem o soube. Logo depois a notícia: um dos índios lá de Cabrobó fora assassinado, não se sabia bem como e a Alzení foi pra lá. Ficamos pra continuar com a reunião. Aquele era o dia da confraternização, logo mais, à noite, todos iam passear em Penedo. Claro que sempre gostávamos desse momento, era quando víamos a cidade, falávamos com as pessoas dos lugares, conversávamos bobagens, tínhamos idéias interessantes e ficávamos um pouco mais leves nas nossas relações.

Mas, naquele dia decidimos não sair. Vimos todos se arrumar, cheirosos e contentes com a ‘folga’, as bonitas mulheres com seus vestidos e batons coloridos. Ficamos, sentamos no corredor, observamos a noite, choramos e conversamos. Choramos, não exatamente pelo homem assassinado, mas pelo que aquilo representava na nossa caminhada, sentimos pelas ações tão covardes, tão carentes de sentido. Conversamos e conversamos sobre a vida. Eu, você e Silvinha. Falamos do sertão, dos nossos relacionamentos e expectativas, dos nossos sonhos e crenças, nossas vontades de crescer como mulheres e como pessoas. Tínhamos idades diferentes, mas ali celebramos nossa afinidade e nosso encontro como irmãs de coração e de comunhão com o que de mais terno poderia nos unir: amor.

Ontem comemorava um aniversário e pensava na viagem que faria hoje. Iria à Piranhas onde encontraria jovens de lá e amanhã seguiria para Poço Redondo, onde a Rafa havia preparado o pessoal para nos reunirmos. Até torci para dar tempo de você voltar de Brasília e participar. Hoje, eram quatro horas da manhã quando acordei. Adoro essa hora, mas não me sentia bem, estava instável e havia dor no braço. Decidi não viajar. Não tinha como avisar, estava sem telefone e os orelhões todos quebrados. Enviei um e-mail. Já era final da tarde quando soube do acidente, a Rafa me mandou uma mensagem no celular já recuperado. Não sei o que senti. Liguei pra ela e tive a confirmação: você e o Derli, os outros três estão internados, entre eles o Leomárcio.

Num pequeno altar, mantido na sala, acendi uma vela e chorei, dessa vez sozinha e com menos inquietação. Com meu sentimento sincero pedi a Deus e a Mãe Santíssima que te recebam e te guiem por um bom caminho. Pedi que fizessem isso, não por mim que ainda tenho um coração cheio de correções a fazer e ainda nem sei pedir, mas por você que, com um aconchegante sorriso, desde tão cedo se empenhou em trabalhar por um coletivo melhor e uma vida mais simples, com os pés na sua terra.

Hoje também falei com algumas outras pessoas. Elas me davam notícias de bebês a nascer e novos projetos a se erguer. Reli seu último e-mail enviado a mim. As palavras “nos vemos em outro momento”, ditas para caso você não chegasse a tempo. Pensei no quanto a vida está determinadamente em transformação. Decidi, por enquanto, minha querida 'fulô do sertão', continuar a refletir mais um pedaço sobre a efemeridade a qual todos temos que nos submeter e desejar conformação, a quem precisar.

Desde aqui o litoral chuvoso desse sábado, o meu carinho.

Clarice.